Escravidão que liberta

Quando pensamos em corrente, imaginamos logo uma prisão e a inerente privação da liberdade, esquecendo-nos de ser ela mais comumente utilizada como instrumento de proteção. A título de exemplo, citemos o seu uso marítimo: como meio de evitar que os grandes barcos sejam arrastados ao capricho das ondas, eles são amarrados junto ao cais ou a âncoras solidamente fincadas no fundo do mar.

Assim sendo, a corrente é também, muitas vezes, um elemento de segurança. Como grande número dos objetos de uso frequente que nos rodeiam, ela acabou convertendo-se numa imagem de realidades superiores. Por isto nós a encontramos, na heráldica, representando ora a generosidade, ora a honra e a distinção; ou como símbolo da fidelidade e devoção que une os corações e as vontades, motivo pelo qual a figura da corrente também tem sido atribuída à castidade e à temperança.

Com o desenvolvimento da Teologia, ela assumiu – de modo muito especial graças a São Luís Maria Grignion de Montfort, no século XVIII – mais uma analogia: a da mediação. Da mesma forma como os elos, unindo-se uns aos outros, ligam os extremos entre si, assim também aqueles que se distinguem por sua maior proximidade com Deus, fazendo papel de intermediários, nos aproximam d’Ele de modo mais fácil, rápido e seguro do que se tentássemos chegar sozinhos e diretamente.

“Eis a escrava do Senhor”

Não é difícil compreender, pois, que a corrente represente, no âmbito religioso, a entrega da própria pessoa, feita, a título de piedade individual, mediante alguma forma de consagração a Deus nas mãos de um intercessor ou mediador.

Como não podia deixar de ser, o modelo arquetípico desta realidade, como de tudo quanto existe de excelente no universo, é Maria Santíssima. Não apenas pelo fato de Ela ser, por determinação divina, a Medianeira da humanidade junto a Deus e a despenseira dos favores celestes aos homens, mas também por ter Ela mesma inaugurado a via espiritual da escravidão de amor, entregando-Se por inteiro para seguir os insondáveis desígnios de seu Criador.

Ora, ao contrário do que prega o mundo moderno, impregnado de opressivo liberalismo, a alegria é a nota característica de quem, seguindo as pegadas de Maria, abraça sinceramente esta “sagrada escravidão”, pois não basta fazer a Deus oferendas e sacrifícios: Ele quer que se dê de coração, sem constrangimento, com alegria e entusiasmo. Feito isto, copiosas graças são derramadas sobre todas as almas que escolhem viver assim, pois Ele nunca Se deixa vencer em generosidade.

Todavia, por uma dessas inversões de que o mundo espiritual está repleto, quem mais dá, mais recebe: quem se humilha é exaltado por Deus, e quem a tudo renuncia pela sua glória é premiado por Ele, nesta vida e na eternidade. A corrente,quando a outra ponta está na mão de Deus, é penhor de verdadeira liberdade. Assim aconteceu com Aquela que Se declarara “escrava do Senhor”: Ele fez d’Ela a Senhora de sua casa, e de todos os seus bens a despenseira.

 

 

(Compartilhado da revista Arautos do Evangelho, nº 189, setembro de 2017, p. 5. Para acessar a revista Arautos do Evangelho do corrente mês clique aqui )
Ilustrações: Arautos do Evangelho, wiki, pixabay

2 thoughts on “Escravidão que liberta

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *