A MELHOR PARTE

A mentalidade de nossos dias dá grande valor às ações materiais, obras de caridade meramente corporais, etc. Não haveria uma visão unilateral nessa atitude? As obras de apoio ou socorro espiritual não estariam sendo relegadas a um segundo plano… ou esquecidas?

Neste dia em que a Igreja relembra a memória de Santa Maria Madalena, o Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, fundador e Superior Geral dos Arautos do Evangelho, esclarece bem este assunto no texto transcrito a seguir.

O AMOR IMPERFEITO DE MARIA E A PREOCUPAÇÃO NATURALISTA DE MARTA

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Deus nos criou para a eternidade

Em razão de nossa natureza humana, somos mais tendentes a prestar atenção nas coisas materiais, acessíveis aos sentidos, do que nas espirituais. Ora, Deus nos criou para a eternidade e, para alcançarmos a bem-aventurança eterna, não importam tanto os nossos atos externos quanto nossos méritos, virtudes e correspondência aos dons d’Ele recebidos.

Trata-se, portanto, de vencer esse pendor instintivo para o que é inferior e procurar sempre aquilo que é transcendente. Importa isso em desprezar tudo quanto é palpável e entregar-nos exclusivamente ao estudo e à oração? Devemos deixar de lado toda e qualquer atividade concreta, inclusive as mais nobres e necessárias, a fim de jamais perdermos o contato com o sobrenatural?

O Evangelho apresenta a solução em poucas linhas, nas figuras de Marta e de Maria, símbolos da vida ativa e da contemplativa.

Santa Maria Madalena

Marta e Maria

Os irmãos Lázaro, Marta e Maria pertenciam a uma das melhores famílias da Palestina e possuíam inúmeros bens, entre eles a confortável herdade de Betânia, distante uns três quilômetros de Jerusalém. (1)

O Evangelho narra uma das estadias de Jesus nessa aldeia. (Lc 10, 38-42) Dirigia-se de Jericó a Jerusalém e aproveitou o ensejo para fazer uma visita àquela família unida a Ele por estreita amizade.

A moradia de Marta em Betânia era um lugar aprazível e recolhido, próprio ao repouso de Nosso Senhor. Bem podemos imaginar a felicidade dessa família ao receber o Divino Hóspede, dispensando-Lhe os melhores cuidados.

A Maria só interessava o Divino Mestre

Chegando a Betânia, após os calorosos cumprimentos e as habituais abluções, Jesus deve ter-Se recostado, como era costume, em uma espécie de divã. Ou talvez tivesse tomado assento embaixo da parreira, no jardim da casa, enquanto se preparava a refeição.

Maria logo se pôs a seus pés, haurindo com amorosa admiração os divinos ensinamentos. Ali estava o Homem a cuja palavra as tempestades obedeciam; que ameaçava os ventos, e eles amainavam; olhava para os mares encapelados, e eles se aquietavam; dava ordem à lepra, e ela desaparecia; tocava nos ouvidos de um surdo e este ficava curado…

Enlevada com o Divino Mestre, Maria por nada mais se interessava. Deixando de lado qualquer outra preocupação — inclusive aquelas referentes ao atendimento do Senhor — permanece ela junto a Jesus, de olhos fixos n’Ele.

Marta afana-se para dar ao Mestre uma recepção à altura

Santa Marta

Correspondia a Marta, como irmã mais velha, fazer as honras da casa. De muito boa educação, queria proporcionar ótima acolhida ao Divino Mestre. Por isso, não deixava aos empregados a função de atendê-Lo. Além do mais, segundo as boas normas vigentes na época, uma visita de categoria deveria ser servida pelos próprios anfitriões.

Para dar-Lhe uma recepção à altura, não havia tempo a perder, motivo pelo qual Marta “estava ocupada com muitos afazeres” e sentia a falta de outros braços com os quais dividir o encargo. Maria, entretanto, tomada de alegria pela presença do Divino Mestre, havia esquecido por completo suas obrigações de anfitriã, deixando todo o serviço a cargo da irmã.

A recepção deve começar na própria alma

Entretanto, provavelmente de modo não consciente, estava Marta atribuindo aos cuidados práticos um valor superior ao próprio Divino Hóspede. Pois suas queixas em relação a Maria atingiam indiretamente o próprio Jesus “que, ao conversar com ela, parecia aprovar o seu proceder”, como bem sublinha o conceituado Fillion. (2)

Quiçá sem perceber, Marta faltava com o Primeiro Mandamento da Lei de Deus. E Nosso Senhor vai adverti-la com muita suavidade.

Nessa ocasião, sublinha Santo Agostinho, “Maria estava pendente da doçura da palavrado Senhor. Marta pensava em como alimentá-Lo, Maria em como ser por Ele alimentada. Marta preparava para o Senhor um banquete, Maria já desfrutava do banquete do mesmo Senhor”. (3)

Amorosa repreensão de Jesus

Nosso Senhor vira perfeitamente a situação de Marta, mas nada dissera. Porém, quando ela tenta tirar Maria do Seu lado, Ele a repreende dizendo: “Marta, Marta!”.

Como terá pronunciado Jesus essas palavras? Qual a inflexão de Sua voz? Deve ter sido solene, majestosa, mas cheia de afeto! E por certo, ao mesmo tempo, tocara-lhe a alma com uma graça, para ela compreender a fundo o significado da divina resposta.

É curioso notar que, depois da Ressurreição, quando Nosso Senhor Se dirige a Maria Madalena, Ele não repete seu nome. Diz apenas: “Maria”. E ela imediatamente exclama: “Raboni!” [Mestre!] (Jo 20, 16).

Bastou-lhe ouvir uma só vez o seu nome para entrar em inteira consonância com o Mestre. Em Betânia, entretanto, Ele sentiu necessidade de repetir: “Marta, Marta!”.

Na Sagrada Escritura nada há de supérfluo, e até pequenos detalhes como este revelam um universo de doutrina. Por que dizer a uma “Marta, Marta”, e à outra somente “Maria”?

Os episódios protagonizados pelas duas irmãs refletem estados de espírito quase contrapostos. No primeiro, Nosso Senhor precisa repetir o nome de Marta como “sinal de afeto e advertência a respeito de um ponto grave”, (4) porque as pessoas engolfadas em questões práticas têm geralmente tendência a não ouvir. Estando, por assim dizer, imersas numa espécie de sono interior, não é suficiente chamá-las uma só vez. E Jesus deve ter repetido o nome de Marta com inflexões de voz diferentes, como uma música, deixando-a tocada no mais profundo da alma.

Estava servindo só a Jesus, outambém a si própria?

Empenhada em servir Nosso Senhor da melhor maneira possível, talvez Marta tencionasse fazê-lo também para manter o grande prestígio da casa. Por isso se perturbava, tomada por preocupações que não condiziam inteiramente com o amor a Deus: estava em questão o nome da família. E quando Deus não está no centro das nossas considerações, a agitação se estabelece com facilidade.

Não nos esqueçamos de que o valor sobrenatural de toda ação depende da intenção com que ela é praticada. E qual era, nesse caso, o objetivo de Marta? Na medida em que procurava não prejudicar a própria fama, não estava servindo a Nosso Senhor, mas a si própria. Preocupava-se, então, com os bens terrenos, não com os da eternidade. Servia, assim, mais com as mãos do que com o coração.

Essa psicologia pragmática e naturalista de Marta é muito mais comum do que se poderia imaginar. Queria ela agradar a Nosso Senhor, mas com a atenção dividida, voltada em parte para o que é do mundo. Talvez até desejasse chamar a atenção sobre si mesma, esperando receber um elogio por sua presteza.

“Porém, uma só coisa é necessária”

“Maria escolheu a melhor parte”, afirma Jesus admoestando Marta. Por suma delicadeza, não formulou a consequência, a qual, no entanto, era inquestionável: coube a ela, portanto, aparte menos elevada…

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(1) Cf. FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: RIALP, s/d. ,v.II, p.334.

(2) Cf. FILLION, op. cit., p.335.

(3) SAN AGUSTÍN. Comentarios de San Agustín a las lecturas litúrgicas (N.T.). Valladolid: Estudio Agustiniano, s/d, p.1073.

(4) GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.III,p.134.

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(Trecho do artigo “O amor imperfeito de Maria e a preocupação naturalista de Marta” do Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, na revista “Arautos do Evangelho”, nº 103, julho de 2010. p. 10-17. Para acessar a revista Clique aqui)

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