Numa época em que tudo vai imergindo no “mundo virtual”, as relações humanas e mais especificamente a amizade corre o risco de entrar pelo mesmo caminho. E as coisas se agravam pois, cada vez mais dependente da internet, tropeça-se a todo instante em pessoas que não existem, com as quais pensávamos estabelecer contato. O verdadeiro convívio humano vai desaparecendo substituído pelo incessante uso do celular.
A amizade, como ouvimos nossos pais contarem, fica parecendo coisa de romance. Entretanto, aqueles de nós que ainda têm um verdadeiro amigo gostará de conhecer os fundamentos da amizade. Esse fundamento é tratado pelo Mons. João Clá, EP, fundador e Superior dos Arautos do Evangelho. Para tal, publicamos observações dele a seguir.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias
“Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como Eu vos amei. Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15, 12-13).
Nosso Senhor nos deu um mandamento novo que tornar-se-á uma das principais pilastras da Nova Aliança: “Amai-vos uns aos outros, assim como Eu vos amei”.
Na Antiguidade, também existia amor — por exemplo, entre os membros de uma família — mas este era ainda defectivo. Porém, se Cristo não tivesse Se encarnado, jamais poderia a humanidade ter conhecido essa sublime benquerença que infunde a bondade e transforma.
Jesus trouxe para a Terra uma nova e riquíssima forma de amor, ensinou-a com sua vida, palavras e exemplo, e beneficiou-nos com sua graça, sem a qual nos seria impossível praticá-la. Ora, assim quer também Ele que nos amemos: tomando a iniciativa de estimar os outros, sem deles esperar retribuição, e estando dispostos a dar tudo pelo próximo, até a própria vida, a fim de ajudá-lo a alcançar a perfeição. O grande drama dos dias de hoje é causado justamente pela falta desse amor.
E, para deixar bem claro até onde ele deve ser levado, Nosso Senhor dá um exemplo prenunciador do seu holocausto na Cruz, sacrifício supremo que, sob um prisma meramente humano, poderia ser qualificado como loucura.
Jamais na História alguém havia amado seus amigos a ponto de se entregar por eles como vítima expiatória. Ora, se Cristo, sendo Deus, assim Se imolou por nós, qual deve ser a nossa retribuição?
Amigo: palavra sui generis, cujo profundo significado foi, entretanto, conspurcado ao longo dos séculos.
Por cima da mera consonância ou simpatia, há na verdadeira amizade um elemento capital: desejar o bem a quem se estima. E, por isso, ela só pode estar fundada em Deus, visto não ser possível ambicionar para o outro nada melhor do que sua salvação eterna.
Ao Se encarnar e nos revelar as maravilhas da Boa Nova, Jesus não reservou para Si aquilo que ouviu do Pai, mas transmitiu-o numa medida proporcionada à nossa natureza. Ora, conhecendo-O, amando-O e cumprindo os seus Mandamentos, transformamo-nos em verdadeiros amigos seus, porque amigo é aquele que conhece a vontade do outro e a põe em prática.
O Evangelho situa a palavra “amor” numa perspectiva inteiramente diversa daquela à qual estamos acostumados, convidando-nos para o mais elevado relacionamento que seja possível alcançar nesta terra: a amizade com Jesus.
Se nos primórdios da nossa era os pagãos, ao se referir aos cristãos, diziam “veja como eles se amam!” ⁽¹⁾, nos nossos dias, tão tristemente paganizados, esse afeto deve brilhar de modo a atrair aqueles que se afastaram da Igreja. E, para isso, precisamos expungir de nossas almas todos os sentimentalismos, romantismos ou egoísmos que possam existir nelas.
“Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus”, exorta o Apóstolo São João (I Jo 4, 7). Quem ama com verdadeiro amor não busca ser adorado pelo outro, nem exige reciprocidade. Procura, pelo contrário, ser educado, cuidadoso e zeloso com todos, sem fazer acepção de pessoas, visando refletir de algum modo no convívio do dia a dia o afeto inefável que Cristo manifestou por cada um de nós durante sua Paixão.
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⁽¹⁾Tertuliano
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Transcrito do Boletim “Maria Rainha dos Corações”, do Apostolado do Oratório dos Arautos do Evangelho, nº 65, maio-junho de 2013